Nova crise de saúde pode gerar oportunidade para modernizar mercados regionais de peixes

Coautores: David McGrath (EII e UFOPA),

Antônia do Socorro Pena da Gama (UFOPA),

Diego Maia Zacardi (UFOPA),

Antonio José Mota Bentes (Sapopema)

Um surto recente da doença de Haff, também conhecida como “doença da urina preta”, deixou as comunidades pesqueiras na Amazônia brasileira em graves dificuldades econômicas. Os consumidores, receosos de serem infectados e assustados pela proliferação de informações errôneas e inexatas, estão evitando comprar os peixes locais, prejudicando as comunidades que dependem deles para a sua subsistência.

Tal como com a pandemia de Covid 19, este último surto, centrado nos estados do Pará e Amazonas, trouxe à luz questões estruturais ao longo da cadeia produtiva do pescado que assolam a pesca artesanal no Brasil e a importância dos esforços em curso para resolvê-los.

A doença de Haff ataca as fibras musculares, liberando substâncias para a corrente sanguínea que afetam principalmente os rins. Os principais sintomas são dores musculares intensas nos braços, pernas e costas, assim como alterações na cor da urina. O consumo de peixe contaminado – inclui três das espécies nativas mais populares da Amazônia, (Colossoma macropomum), pirapitinga (Piaractus brachypomus) e pacu (Mylossoma spp.) -e acredita-se ser as principais fontes do surto.

As autoridades sanitárias documentaram primeiro os casos da doença em 2008 e depois novamente em 2015. Acredita-se que o seu aparecimento esteja associado as grandes cheias e áreas de águas paradas, bem como à floração de algas, embora não haja ainda provas concretas das origens. As três principais espécies de peixes ligadas à doença partilham hábitos alimentares semelhantes, possivelmente adquirindo a toxina à medida que se alimentam. A maioria dos casos notificados ocorreram num trecho de 500 quilômetros entre Manaus e Santarém, no intervalo dos meses de julho a outubro, à medida que as águas começam a descer (momento de vazante dos rios da região).

As comunidades pescadoras de Santarém receberam em setembro auxílio alimentar (cestas básicas) durante o surto da doença de Haff. O surto assustou os consumidores, deixando as comunidades pesqueiras da região sem rendimentos.

No total, cerca de 81 casos foram confirmados nos estados do Pará e Amazonas, as vítimas apresentaram idades entre 14 e 80 anos. Acredita-se que todos tenham consumido peixe contaminado.

Apesar do pequeno número de casos, em comparação a população que consome peixe diariamente, o aparecimento da doença provocou uma reação exacerbada por parte do público. A falta de informação sobre as reais causas da urina preta alimentou a especulação desenfreada e as notícias inflamadas dos meios de comunicação social, que acabaram por incentivar a paralização do consumo de peixe, deixando os mercados locais desertos e os pescadores sem renda. Restaurantes e os demais atores da cadeia produtiva de pescado – muitos dos quais ainda estão lidando com as consequências econômicas da pandemia de Covid 19 – também foram afetados e estão sentindo a pressão do surto.

O que começou como uma pequena crise sanitária tornou-se rapidamente uma grave crise económica para os pescadores e demais atores da cadeia produtiva de peixe. As circunstâncias tornaram-se tão agudas que em setembro 41 comunidades de pescadores do município de Santarém receberam doação de13 toneladas de alimentos como medida emergencial para substituir a quase total perda de renda devido ao surto.

As orientações dos oficiais de saúde centraram-se na baixa probabilidade de infecção e menor risco de óbito (um caso em Santarém), além de esclarecer sobre a importância de evitar o consumo das três espécies mais associadas com a doença. Funcionários do Departamento de Agricultura e Pesca do estado reuniram-se também com representantes de outras entidades de Santarém para organizar um sistema para melhor rastrear a doença, acompanhando a trajetória de peixes individuais desde a captura nos lagos de várzea até os mercados, restaurantes e supermercados. Essa medida é essencial para identificar os locais onde foram encontrados os peixes possivelmente “infectados” e as condições ambientais do pesqueiro. Professores da UFOPA formaram um grupo multidisciplinar para acompanhar as investigações e identificar áreas onde pudessem contribuir.

O momento atual oferece uma oportunidade de aproveitar as iniciativas existentes para mobilizar o apoio governamental para modernizar a cadeia produtiva do pescado. Estas incluem: programas de monitoramento das condições sanitárias do peixe em mercados ao ar livre; programas de formação para os pescadores sobre as melhores práticas de manuseio e armazenamento de pescado; e um programa de compra subsidiado para facilitar a aquisição de equipamentos que cumpram as exigências sanitárias legais.

Entretanto, pescadores, indústrias de pesca, donos de restaurantes, supermercados, universidades e ONG locais têm trabalhado com o governo local para melhorar as condições. A elaboração de um plano para o Desenvolvimento Sustentável da Pesca e Aquacultura no Baixo Amazonas reuniu vários grupos envolvidos na cadeia produtiva do pescado local e gerou diversas iniciativas, além daquelas mencionadas anteriormente, incluindo feiras de peixe de origem sustentável e campanhas de mídia destinadas a sensibilizar os consumidores sobre a importância da gestão sustentável da pesca.

Uma feira recente que mostrou espécies de peixes amazônicos nativos, como o pirarucu, ajudou a impulsionar a procura dos consumidores e a popularizar o consumo de peixe de origem sustentável na região.

Até este último surto, Santarém estava recebendo um crescente reconhecimento nacional e internacional como um importante centro gastronômico da culinária amazônica, com destaque para a grande variedade de peixes nativos. Vários chefes e donos de restaurantes locais estão combinando a cozinha nacional/internacional com receitas e ingredientes amazônicos locais para desenvolver novos pratos.

Nas últimas semanas os consumidores começaram a retornar aos mercados e as vendas de pescado estão se recuperando, com a exceção das três espécies implicadas na maioria dos casos. O que resta agora é estabelecer um programa liderado pelos governos municipais e estaduais que valoriza o recurso pesqueiro amazônico e que dê garantias aos restaurantes, supermercados e consumidores de que, apesar deste último surto, o pescado oferecido nos mercados da região é seguro e que cumpre os padrões sanitários nacionais.

Estas medidas são uma condição prévia necessária para o desenvolvimento sustentável do enorme potencial dos recursos pesqueiros amazônicos, que têm tido um papel central no consumo e comércio regional desde os tempos pré coloniais. A esperança é que a pesca praticada em Santarém se restabeleça e saia dessa experiência oferecendo produtos pesqueiros de alta qualidade e diversidade para os consumidores e restaurantes celebrando a culinária e os peixes amazônicos.

Leia também o artigo em: https://earthinnovation.org/2021/11/recent-health-scare-offers-opportunity-to-improve-local-markets-for-amazon-fish/